24 de out. de 2010

Conta um ponto


Publicando um conto. Escrevi esse faz um tempo, em 2007, quando estava no nono ano. Eu acho ele interessante.

Nada mais que lixo

Nada mais que lixo, nada menos que odor. É como um depósito, não se sabe ao certo o que é. Só se sabe o que existe. Muita lama, muito saco, muito plástico e muito vidro. É um junto de muitos. Desorganizados e jogados para outros muitos catarem esses. E no muito um pouco mais vivo José está. Ele sua patroa e seus seis pequenos pupilos. É uma vida, dura talvez. São exímios alpinistas, pois ao escalarem os muitos, sentem-se mais do que muitos, mais do que pensam ser. E vão indo sendo, e sobrevivendo, co-existindo por outros muitos.

É um dia, nada mais e nada menos, só um dia. José sente-se mais, e pela energia súbita, cata mais plástico e mais vidro, pensa que terá mais lucro, e assim continua a catar, a cantar, a tentar. Caminha, corre, escolhe, olha para as nuvens a se formarem e grita aos companheiros que choverá, acelera sua mão e seu passo. Cata um bocado de filhos também, e corre à cabana. Suado do trabalho e molhado pela chuva, depara com a mulher e lhe diz:

— O quê que há mulher, não foi catar hoje?

— Nada não José, resolvi dar uma varrida na nossa casinha.

— Ah bom, pensei que tava passando mal. Dá-lhe um beijo de boca molhada, sentem o sabor da água e o sabor de ambos, permanecem assim a desfrutar um do outro, a sugar os bons e maus momentos, partilhando-se

, querendo-se. E um trovão os separa e assim voltam à vida e à lona furada, que escolhia ficar encima da cama. Lá vão eles mudar seus móveis que ditados pela chuva fugiam. Demoram nisso, pois as suas quatro mobílias custavam dançar sobre o chão lamacento. Acabam, encharcados e embebidos de lama. Nessa árdua tarefa gastam o tempo que seria do banho, mas esse momento não teriam. Devido à cabine da ducha, que fica lá fora, estar mais suja do que eles. Dormem enlameados e carimbam o colchão com as digitas de seus corpos. Os seis filhotes empilham-se em dois colchonetes; já que um está pura água e inutilizado pelo barro. Quem vê aquela família ilhada no seu barraco de lona preta estranha, mas fecha os olhos.

Acorda outro dia, ainda com o resto do chover antigo, nubla-se. Um dia de nuvens leves e pessoas pesadas. José acorda com a nesga de sol que rompe a lona. Abre o olho preguiçoso e pensa em sua desgraça, no escuro oculto que estava. Lamenta, porém não pensa muito. Pensar não é seu ofício, é seu ócio. Levanta e desperta os outros, ainda bêbado do sono bambeia nas pernas e chuta umas poças. Esfrega os olhos e desagrada-se com o que vê, esfrega de novo e lembra que é nesse mundo que vive. Sua mulher, que acorda os meninos, afaga-lhe as costas e o cumprimenta com um abraço. Logo vão aprontar o que comer, vão à caça. Os meninos junto com a mãe caçam perto de casa, entre sacos pretos e azuis identificam restos de bolachas mordidas, frutas pouco estragadas, ou mesmo pães, um tanto mofados. Já o pai aventura-se nos picos distantes e inóspitos, onde talvez achásse raridades como brinquedos, peças úteis, objetos arranhados ou mesmo dinheiro. José afirma que é um trabalho digno e que compensa o esforço, sua mulher não. Nesse dia que ele procura um algo mais em um muito mais longe, repara num saco vermelho. Saco vermelho, existe? É o que José diz. Rasga-o, e nele só vê papéis amassados, muitos; que dariam uma árvore. Ele cava, e no monte de celulose vê uma carta, de mesma vermelha cor. Vê ela, a joga, mas a recupera no ar e soca-a dobrada no seu bolso. Cata mais um tanto de coisas e volta exausto e sujo para casa. O sol já se enlaranja e mistura-se em um frenesi de cores. José não percebe. Chega em casa com a família já limpa e aguardando seu banho. Lava-se e usa a mesma roupa, as outras ainda não prestavam. Sentam-se em volta da cama, rezam e depois do ritual comem um tanto de coisa catada e outro tanto comprado com o lucro das coisas catadas. Dormem, tentam sonhar, tentam.

Rasga as pálpebras. Quer acordar, mas o sol não vem. Levanta, mas sente algo em sua calça, percebe, lembra da carta vermelha. Tateia ainda deitado e esticando-se consegue capturá-la, vê seu tom vermelho molhado. Titubeia e a abre, vê sua folha pautada cheia de tintas e curvas; não entende, mas acha que são letras. Fica lá, a contemplar tantas harmoniosas curvas. Estonteado é atraído por elas. Suas formas, que não são inéditas, parecem mais que o comum. Não faziam parte do muito, eram muito mais. Delira e imagina mil e uma imaginações para aquelas curvas, queria deliciá-las, desvirginá-las. Mas sua ignorância o limita.

Por estar assim tão navegado, não percebe que o sol está a um palmo do chão. E sua mulher interrompendo seu transe, o joga ao precipício da realidade. Desiludido sai da cabana para catar. Lembra-se nas pausas do respiro, das vermelhas cartas dos vermelhos sacos; perseguiam-lhe a mente. Quer mais do seu vermelho, quer mais do seu sangue. Sendo assim volta aos picos distantes e lá busca seus vermelhos sacos. O primeiro que acha já não tem tantos papéis quanto o outro, mas sua carta vermelha o aguarda; no fundo camufla-se, mas está lá. Acaba que é pega por ele. Ele a guarda, e sai à procura, quer mais, quer ver mais vermelho, mais. Em sua louca saga, encontra mais quatro. Exausto, sem força, rasteja até a cabana de lona preta. Tonto de esforço via sete vultos, e sem interesse precipita na cama. Fecha e abre os olhos constantemente, sua curiosidade pelas curvas ali inscritas era infinita, e sopitava aos olhos impedindo seu sono.

Sacode sua esposa, quer desvendar o labirinto das cartas vermelhas. Ela sonolenta o questiona, porém diante da sua insistência cede. À beira da fraca luz do barraco começam a abrir as cartas. Ela passa os olhos, o encara. Ele a pede, suplica, que o narre aquelas letras. Ela, sem caminho, começa. E linha por linha, parágrafo por parágrafo, vai falando. Conta a história de uma mulher. Que entre ódio e amor fala do seu amado. Ela é a serva de sua realidade e de um marido opressor. Conta seu primeiro encontro, seu segundo beijo, sua terceira ilusão. Na última carta ela quer a morte de seu amado, quer seu sangue, quer a morte em seus olhos. José, de olhos vidrados, pensa paralítico. Levanta da cadeira e arruma uma trouxa. Em sua única palavra diz “Adeus”. Sua mulher corre a porta e o vê partir.

Saberão mais tarde, que mais um homem foi assassinado, e o assassino em seguida suicidou-se. Bradava “Canalha” com algumas cartas que tinham o endereço do morto na mão antes de dar os dois tiros. Também saberão que as cartas vermelhas eram um diário escrito em outra língua qualquer, que a nossa narradora desconhecia. Saberão ainda que esse muito pouco, cresce e se torna muito e se acumula, mesmo enquanto ainda sonhamos.




Inté

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